quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Indesejável Lucidez

Acordado, encolhido, tentando encontrar uma sensação que significasse proteção, percebeu que chovia. Seus planos, de interromper o convívio dele com ele mesmo, foram duramente amputados por uma simples chuva.

Ele compreendia que suas caminhadas, observando as outras pessoas, não o tiravam de sua condição de espectador, mas os cheiros e as temperaturas humanas ajudavam-no a criar uma falsa companhia. Nesse dia, por causa das condições climáticas, não havia outra opção, teria que passar seu tempo com ele mesmo.

Deitado, sentindo uma profunda frustração por não ter encontrado aquela posição que representaria uma mão amiga, um calor de ser humano conhecido, que lhe faria sentir protegido, levantou-se.

O calor de seu corpo em contato com o frio da casa, quando abandonou as cobertas, era tão mais real que sua cama aquecida, apenas por ele mesmo, que foi com susto e medo, que sentiu esse choque térmico, comparável com a realidade.

Parado, pensando em ocupar seu tempo com atividades físicas que não o permitissem pensar, sentir angústia, percebeu seus pés plantados no tapete, viu que seu rosto, por ironia, estava exatamente em frente ao espelho, aquele espelho que não era capaz de refletir nada nem ninguém além de sua própria cara. Foi quando recebeu esse tapa, agressão muito dolorida. Não podia ser o espelho o responsável por essa violência, apesar de nesse momento, ele preferir ter a ilusão de que algo inanimado o tivesse atingido. Já que a verdade era que encontrara a solidão, não essa solidão que se sente todos os dias por alguns momentos, uma outra que era a sua mais concreta companhia.

Sentado no sofá, sentiu um vazio que nada, nem comidas, nem bebidas, nem ocupações poderiam preencher. Ouviu as buzinas e as vozes da rua, sem compreender que jamais teriam alguma conexão com sua vida. A solidão e o silêncio de sua casa, único espaço realmente seu, eram muito mais verdadeiros que os acontecimentos de fora.

Sentindo uma dor muito mais forte e de olhos arregalados, se escutou pronunciando a palavra verdade, sem entendê-la de fato, tentou se proteger dela.Nesse dia, que havia começado com a solidão e essa espécie de verdade que não entendia.

Os barulhos dos carros machucavam seus ouvidos, o contato com as pessoas desconhecidas, pelas ruas, fazia com que ele sentisse náuseas.Perplexo por ter pensado que o contato com a realidade, fora de sua casa, seria capaz de escondê-lo de seus próprios pensamentos. Voltou a se deitar, precisaria dormir, só porque sofrera, não significava que o dia seguinte esperaria ele se recuperar, para então começar.

Sabia disso, o que também aumentava seu sofrimento. Tentando dormir, desejava apenas que não houvesse novas verdades e solidões mais profundas a serem descobertas.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Odisséia Urbana

Pensou em desistir do trabalho, dos estudos e da vida burocrática que levava. Mas era um conformado.
Voltou em si e estava cercado de pessoas desconhecidas, que lhe falavam algo sobre a origem da linguagem COBOL. Aquela vida era uma discrepância em relação aos seus desejos e sonhos. Pensou na praia deserta em que esteve no último verão, na brisa marinha e das bebedeiras homéricas. Novamente se viu cercado por pessoas sedentas em ouvir o que tinha a dizer.

Trajano era alto, magro e com um olhar vazio, que olha para o nada, que lhe dava um ar de intelectual, ainda mais com aqueles óculos de aro fino. A profundidade de seus pensamentos o diferenciava das pessoas daquela reunião. Sua mente vagava por horizontes até então desconhecidos. Até que ponto poderá aguentar aquilo?

Cumpriu seu papel de profissional de informática e relatou seus estudos sobre as origens das linguagens de computador aos demais. Todos ouviram atenciosamente, o que deixava Trajano um tanto quanto rubro. Sua natureza solitária não permitia que ficasse a vontade com as pessoas. A sua timidez exacerbada se tornava uma espécie de imã ao fundo do poço. Não conseguia mais distinguir o que fazia ali parado, sendo observado por todos.

Desmaiou. Acordou na enfermaria com a cabeça latejando,sem entender o que havia acontecido. A enfermeira chamou “aquilo” de mal súbito, porém, na sua cabeça tudo aquilo era o reflexo do nervosismo e da pressão exercida sobre ele. De fato, não aguentava mais o convivio com aqueles trastes, como costumava dizer.
Tratou de ir embora para sua confortável casa,e descansar e quem sabe nunca mais acordar.

Acordou renovado, pronto para mais um dia de extrema burocracia e explicações funestas. Não sabia como iria ser recebido por seus colegas e por seu chefe, um legitimo filho da puta. Afinal de contas, ontem era uma apresentação de suma importância para empresa em que trabalha. Fora designado para a apresentação aos clientes e desmaiara, transformando todas as explicações em escuridão.

De fato, sua moral não estava nada boa com o pessoal do setor e muito menos com seu chefe que o demitira sem maiores explicações. Nada a fazer. Desistir. Desejos reprimidos se tornavam incontroláveis. Não conseguia mais agir de forma coerente com sua pessoa. Todos haviam especulado seu motivo para o desmaio. Era um drogado, um bêbado inverterado de última categoria, que não vale o chão que pisa, era o que todos pensavam.

Não tinha amigos, seus pais morreram a dois anos atrás. Sem mulheres e sem filhos. Nem sequer um animal para estimar. Apenas o desespero de um desempregado. Não estava entendo o motivo daquele julgamento que fora condenado. Nunca dera um motivo para pensarem aquilo dele. Era sucinto, educado com todos. Nos vinte e dois que trabalhou naquela empresa nunca se envolvera em nenhum atrito. Porquê, se peguntava. Não era merecedor daquele sofrimento atroz.

Pensando melhor e mais profundamente durante a semana, Trajano não se permitia mais ficar sofrendo e chorando por um emprego que nunca o satisfazera. Apesar da alta remuneração. Viu seu reflexo no espelho e enxergou algo que não esperava. Coragem para fazer. Olhou dentro dos seus olhos e obteve a força que também necessitava.

Trajano teve acesso ao endereço correto. Arrumou toda parafernália que necessitava. Desde cordas à alcool. Sem esquecer das gilletes. Chamou o táxi. Enquanto o táxi se locomovia pelas ruas, pensou que poderia ser a última vez que veria aquelas praças e a movimentação que estava acostumado naquele bairro.

Estava em frente á residencia, não tinha mais volta. Iria assassinar seu antigo chefe. Mas iria tortura-lo antes. Rezou para que seus filhos e sua esposa não estivessem em casa. Mas estavam. Agora é tarde, não dá mais para retornar. A não ser que...

Chorando copiosamente e sem aquela força que obteve olhando-se nos olhos, Trajano crava a gillete em seu pescoço, fazendo o sangue jorrar. Morreu sem ao menos deixar algum bilhete e foi enterrado como um indigente.

Lembrança

Entrou e observou o rosto de cada um. Os olhos rútilos não disfarçavam sua situação. Era um louco. As mão trêmulas dentro dos bolsos e o andar arrastando os pés pelo chão, não disfarçava o inevitável. Era também um psicopata em potencial.

A mãe sofreu durante oito anos, entre idas e vindas. As circunstâncias forçaram ele fazer. A tragédia estava anunciada. O dia se transformou em noite. O vendaval e as gotas pesadas oriundas do céu negro, transformaram o dia e o humor de Camilo.

A tempestade exasperante e barulhenta, o sufocava. O raciocíonio divagava absurdos inimagináveis, como matar a própria familia. Estava inócuo, vazio. Nada sentia, apenas imaginava o após. O transtorno em relação as suas cogitações estava piorando. Caminhava de um lado para o outro dentro de sua espaçosa casa. Sua mãe estranhava, mas não perguntava absolutamente nada, com medo de retaliações violentas.

Desde pequeno Camilo passou por tratamentos psicológicos, para tratar dessa fúria insana que brotava dentro de sí, inexplicavelmente. Podia estar bem e conversando, mas no minuto seguinte estava tentando botar fogo em sua casa. Já havia passado uma temporada no manicômio. Os seis meses que lá estivera, nada ocorreu. Parecia inofensivo e até quieto em demasia. Pensamentos afloraram com o tempo.

Preso, dentro da masmorra úmida, coberta por animais rastejantes. A garganta rasgada e os olhos no fundo do seu rosto magérrimo. Parecia um judeu na Segunda Grande Guerra. As roupas imundas e o cheiro acre, ardia as narinas de quem passasse em frente da prisão escura. Pensamentes lancinantes e visões de um corpo em chamas.

Já não dormia a dias. A comida era podre. A atmosfera pesada. Falava aos enfermeiros que houvia todas as noites barulhos de ossos quebrando. A degradação humana era visivel. Aquele homem se transformou em lixo. Restos da humanidade.

Havia noites que Camilo berrava sem parar. A noite inteira. Desesperado. Só parava com sessões de choques.

A força que lhe restava era a que usava para berrar. Não queria comer. Bebia sua própria urina. Alguns enfermeiros tinham medo dele. Todos falavam que ele era capaz de tudo. Lembrava-se de sua infância quando apanhava. As cicatrizes não estavam secas.

Alucinações. Não aguentava mais a sua nefasta existência. Não podia conviver com seu passado. Agora sua vida acabou e não poderá mais rever sua familia. O arrempedimento não mata, mas corroe. Vomitava só em lembrar o que havia feito. O fogo brilhava.

Não falava com ninguém. Era forçado a falar com os temerosos enfermeiros. Espancamentos sempre foram recorrentes nos Hospícios. As feridas estavam aumentando. Sua orelha coberta por fungos. Quando entrou aqui á dez meses atrás parecia saudável, fisicamente. Pele e osso. Dor e miséria. Insanidade e tortura. A loucura completou o último estágio.

Eu fui o último a falar com o Camilo, ou o que restou dele. Não me reconheceu. Camilo estava magro e sem cabelo, não que fosse calvo. Os lábios estavam rachados e os braços finos, com a enorme queimadura. Traumas daquele dia. Meu rostou parecia arder quando eu vi Camilo. Pobre Camilo.

Suas cinzas foram jogadas no rio em que pescávamos, quando éramos crianças. A lembrança da última visita não me larga. Está incrustada na memória. Só a morte irá apagar. E pelo tempo que me resta, logo esquecerei de tudo.